segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A medida exata.


Há de existir uma medida exata, que nem eu nem você conhecemos, para se manter um indivíduo exatamente na linha fina; verdadeiramente cortante, que separa a necessidade de desonestidade. Essa medida, só a conhecem as linhagens a quem foi dado decidir quem vive e quem morre, desde centenas de anos. E mesmo esses não são capazes de expressá-la, posto que é tão tênue, linha tão risível, quase quântica: a trazem marcada como receita, entranhada fundo na mitocôndria, no próprio DNA. Tão entranhada que não a tem como coisa consciente, posto que, por sua vez, viver conscientemente com tal absoluta crueldade seria intolerável (pelo menos assim creio eu, da minha inocência de gente comum) a qualquer pessoa. Acordar pela manhã, olhar-se no espelho, e saber-se responsável, de caso pensado, por manter outros seres humanos numa miséria, numa desumanidade tamanha; seria ter de reconhecer-se um monstro, sentir-se verdadeiramente demoníaco. Imagine a medida exata que mantém uma mãe no ponto extremo de levar a sério um país no qual seus filhos vendem balas no sinal aos cinco anos de idade – e ainda assim, não os quer transformados em delinqüentes; celerados; animais intrinsecamente destruidores da própria sociedade que os coloca nessa condição.
Imagine a força necessária para se manter honesto e minimamente decente, vendo seus próprios filhos, sua própria carne e seu próprio sangue explorados de modo tão baixo e vil. Imagine, somente por um instante, o seu próprio filho ou filha, aos cinco anos de idade, vivendo na rua, dormindo entre trapos sujos e transitando entre a fumaça dos carros numa avenida Tiradentes, em são Paulo, ou numa avenida Brasil, no Rio – batendo nos vidros dos carros dos cidadãos de bem, segurando nas mãozinhas miúdas uma caixa de chicletes, a qual pedem humildemente que comprem, por favor, “pra me ajudar, tio”. Sem comida, sem escola, sem saúde. Mais ainda, sem a mínima esperança de um dia serem tratados como gente.
Sinceramente, se você foi capaz de imaginar essa cena e não está trincando os dentes com uma raiva funda, não devemos pertencer, eu e você, à mesma espécie. Como é que essas pessoas conseguem se segurar o suficiente pra não dizer aos seus filhos: ao diabo com a seriedade, se essa nação nos trata como animais, sejamos animais então; arrancando a dentadas qualquer pedaço que se possa botar os dentes e fugindo para a caverna escura do anonimato completo de não ser ninguém. De onde tiram a força para não sair arrebentando as vitrines, destruindo tudo, virando de cabeça para baixo essa lógica insana que as mantém ali? Tiram essa força do medo? Medo de que? Qual é o ponto mais baixo em que podem ser colocadas? Se até os prisioneiros são mais bem alimentados? Se os próprios assassinos nas cadeias recebem alguma coisa, enquanto a eles não é dado absolutamente nada.
Não, não vem do medo essa força. Vem de um lugar muito mais estranho e abstrato, deve vir de uma esperança unicamente sagrada. Que certamente não deve ser religiosa. Deve ser outra medida, extremamente delicada, que impede que se perca a vontade de ser gente, mesmo quando os nossos são tratados como animais.
Ou menos ainda, porque os cuidados oferecidos aos cães das pessoas que tem um lugar decente na nossa sociedade são infinitamente mais humanos que aqueles que recebem as crianças realmente pobres.
Nós, brasileiros, achamos estranho que outros povos considerem vacas e macacos como animais sagrados. Mas sinto que consideramos nossos cães e gatos de estimação exatamente como seres sagrados a quem devemos todos os cuidados. A mim parece estranho que os povos – nós, brasileiros, inclusive – tenhamos tanta dificuldade em considerar sagrados os próprios seres humanos.

(C) 2010 Paulo R. Ferreira. Todos os direitos reservados.

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