sábado, 29 de janeiro de 2011

Enquanto você dormia


Durante o sono, sabemos que o cérebro reorganiza as experiências do dia, categorizando e criando ligações que transformam os dados da memória de curto prazo em memórias de longo prazo. De modo geral, as memorais de curto prazo funcionam como o chip de memória do computador: armazenando tudo para consumo e uso imediato, sem referencias cruzadas e rapidamente acessível. Uma informação recebida hoje fica ali disponível, acessível sem grande esforço. Quando vamos dormir, o cérebro reorganiza então a memória de curto prazo, avaliando aquilo que precisa ser guardado para futura referencia e descartando as informações desnecessárias para liberar espaço de memória. O fato de que sua reunião era as quatro horas de uma terça-feira pode ser muito irrelevante para futura referencia, então isso segue para uma área que é similar ao descarte: algo que não ficará indexado para referencia fácil. De todo modo sabemos que isso fica guardado num nível qualquer, abaixo da consciência, porque pode ser recuperado por meio de hipnose ou regressão. As informações mais relevantes recebidas na reunião, entretanto, precisam ser guardadas e acessadas novamente. Essas serão categorizadas e guardadas na memória de longo prazo, que é indexada, e podemos acessá-las novamente a qualquer momento. A memória de longo prazo é necessariamente indexada e organizada, de modo a podermos acessá-la sempre. Essa reorganização permite que o espaço de memória imediata , que é finito e limitado, seja liberado para o dia seguinte.
Precisamos dessa liberação para que possamos entender e captar as coisas no dia seguinte. As pesquisas mostram claramente que a falta de sono prejudica a percepção e dificulta o aprendizado, tornando os processos mentais mais lentos, exatamente porque temos uma área sobrecarregada, em função de não a termos liberado através da organização cerebral que aconteceria durante o sono. Durante o sono profundo, mais especificamente. Além do tempo de sono profundo, uma parte do sono é dedicada ao estado REM, no qual sonhamos. Está provado que o fato de lembrar ou não os sonhos não tem qualquer relação com o fato de sonharmos – todos sonhamos, independente de lembrarmos, e a falta de sono REM, não tem conseqüências graves como a falta de sono profundo, que cria comportamentos psicóticos e esquizofrênicos. (voltaremos às razões disso mais adiante)
Durante o sono REM e os sonhos, estamos criando as linhas de ligação para recuperação das memórias indexadas. São criados caminhos sensoriais que funcionarão como gatilhos para as nossas memórias. Para isso, áreas do cérebro que são responsáveis pelos sentidos precisam ser ativadas, de modo que o caminho se estabeleça. Assim, a área responsável pela visão precisa receber um estimulo interno para criar uma associação com a nova memória indexada no sono profundo. O Cérebro cria um disparo visual, que é percebido pelo Cérebro adormecido como uma visão – mas como estamos dormindo, isso nos vem como o que chamamos de sonho. Do mesmo modo são criados os caminhos para os outros sentidos, como olfato, tato e paladar. Mas como nossa memória é fortemente indexada e acionada por estímulos visuais, este é o aspecto mais lembrado nos sonhos, o dominante.
Seria interessante pesquisar como sonham aqueles que nunca tiveram visão, os cegos de nascença. Naturalmente deve haver um sistema diferenciado, posto que o sentido da visão nunca foi utilizado.
A falta de sono REM, portanto, impede a criação dos caminhos sensoriais para recuperação das memórias indexadas. Mas podemos continuar vivendo normalmente sem isso, por longos períodos. No longo prazo, teremos menor acesso e mais dificuldade para recuperar as memórias – e certamente seremos privados daqueles momentos em que os sentidos nos transportam ao passado; quando uma determinada visão no dia de hoje dispara uma memória complexa indexada que nos remete diretamente ao passado e a uma situação anterior. Mas porque a falta de sono profundo nos torna psicóticos e nos leva a comportamentos esquizofrênicos?
Está comprovado que os impulsos mentais esquizofrênicos são muito semelhantes aos impulsos naturais que ocorrem durante a fase REM do sono – ou seja, a esquizofrenia é na prática, como sonhar acordado. O limiar de realidade objetiva é afetado, e o esquizofrênico não consegue distinguir entre o que lhe é externo (o que acontece objetivamente no mundo) e o que e interno (o que acontece subjetivamente dentro de sua mente.)
Isso nos leva a conclusão que o sono profundo, que prepara e indexa as memórias, tem um papel fundamental na liberação do nosso limitado espaço de memória recente, não indexada. Ora, na ausência do sono profundo, o cérebro passa a operar com a memória de curto prazo sobrecarregada. Em poucos dias, privado de sono, tentará iniciar, mesmo acordado, o processo de indexação através dos sentidos, buscando um modo de aliviar a memória de curto prazo. Ao iniciar este processo de indexação utilizando as áreas dos sentidos enquanto o sujeito está acordado, cria estímulos subjetivos que se confundem com a percepção objetiva do mundo. Deste modo, sobrevém os estados psicóticos e esquizofrênicos, porque o sujeito passa a, literalmente, sonhar acordado, sendo incapaz de separar os processos objetivos dos subjetivos, passando então a uma percepção distorcida da realidade. Essas observações apontam para uma coerência importante na terapêutica atual em utilizar o sono induzido para os estados graves de esquizofrenia e psicoses. Convém lembrar que o sono induzido desse modo impede o funcionamento normal dos processos REM do sono.
Sabemos que a falta de sono profundo por períodos muito prolongados leva à morte. Mas porque? O processo de aprendizado é para o que o cérebro foi concebido. Esse processo depende da indexação das memórias. Não podemos conscientemente parar o processo de aprendizado, do mesmo modo que não podemos conscientemente para o processo biológico do fígado. Assim, trabalhando de um modo inadequado, o cérebro vai se sobrecarregando até que suas áreas responsáveis pelos processos vitais começam a ficar comprometidas. Sem a organização essencial, todo o órgão entra em colapso e faz com que o corpo acabe decaindo por erros ligados à manutenção dos processos vitais.
Curioso é que tenhamos criado computadores que são cópias dos nossos sistemas mentais: nossos computadores tem memórias RAM, que são acessíveis muito rapidamente, sem necessidade de muita indexação, mas com capacidade de armazenamento muito mais limitada, mas para grandes
volumes dependemos de baixar estes conteúdos no HD, devidamente organizado e indexado, liberando assim a memória RAM. Do mesmo modo, nós, para grandes volumes de informação, dependemos da indexação realizada durante o sono profundo, que faz com que a informação seja ligada e organizada, setorizada e catalogada pela mente, de modo a ser acessível posteriormente. Os sonhos são, portanto, a parte perceptível dos processo mentais de organização e referencia para acesso posterior.
Porque os conteúdos dos sonhos nos parecem muitas vezes incompreensíveis e até mesmo aleatórios?
Creio que a velocidade com a qual esse processo acontece no cérebro é tão grande e tão intensa, que o que lembramos dos sonhos, no geral, assemelha-se a ver um filme em velocidade muito acelerada. O meu DVD player tem uma função que exibe o filme numa velocidade 64 vezes superior à normal. O efeito de tentar assistir algo nessa velocidade é muito semelhante ao que apreendemos de uma sonho: o protagonista aparece em cena, de repente está num outro lugar, em seguida desaparece subitamente, a seguir está num outro país... claro que entre todas essas cenas, aconteceram muitas outras que deram um sentido claro e contínuo à história. Mas a questão é que ao vislumbrarmos apenas pedaços da história, numa velocidade muito acima daquela que nossa consciência pode captar, temos a sensação de descontinuidade e aleatoriedade das ações. Na verdade, nossos sonhos provavelmente tem um enredo coerente e de seqüência perfeita. Só que a velocidade com a qual o cérebro processa essas indexações é inadequada para nossa mente consciente. Desse modo, ficamos apenas com os pedaços que conseguimos captar, num conjunto que, no geral, não parece fazer sentido. Estamos apenas vendo fragmentos de um filme exibido em velocidade muito maior que a nossa compreensão consciente é capaz de captar.
E se a linguagem é o limitador da velocidade com a qual pensamos?
Levando em conta essa possibilidade de velocidade ampliada durante o sono, esse processamento acelerado em modo REM, se não tivéssemos que conscientemente verter em linguagem o que pensamos, pensaríamos muito mais depressa? As idéias vem mais rápido do que podemos expressar - mas só são reconhecidas depois de comunicadas ou pelo menos guardadas e entendidas por nos mesmos, por meio de linguagem, interna ou extremamente. sem a barreira da linguagem seriamos muito mais rápidos, sem a interface, seria muito mais veloz, exatamente como linguagem de computação de alto nível.
Isso poderia indicar um caminho para o aprendizado acelerado, se interpretarmos as ondas cerebrais do modo REM e as utilizarmos para inserir conhecimento? Posteriormente, quando da utilização do conhecimento, aí sim ele seria vertido sob forma de linguagem – mas já teríamos o conteúdo interiorizado – muito mais rapidamente do que se fosse mediado por formas de linguagem de baixo nível necessárias para a transmissão tradicional do conhecimento, como usamos hoje.


(C) 2011 Paulo R. Ferreira. Todos os direitos reservados.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Dignatário da ONU

Um jovem idealista trabalhava na ONU. O que era uma grande realização profissional, visto que acreditava ser sua vocação fazer o bem ao próximo. Ele tinha grande consideração e genuína preocupação com as condições de vida os habitantes dos países subdesenvolvidos. Deixava, de fato, de viver em seu país altamente desenvolvido e confortável para dedicar-se a ajudar os mais necessitados. Durante anos dedicou-se muito, e um dia, chegou a uma posição relevante, destacado como Dignatário da ONU para os problemas de um país africano. Viajou para o país para conhecer de perto, em primeira mão, as condições de vida dos locais.
Ficou chocado com a miséria, com as crianças doentes, com as mães sem recursos. Não que ele não esperasse por isso, mas era ainda pior sendo visto ali, ao vivo, com pulsação, nome, sobrenome e olhar de fome.
Ele estava sendo guiado em sua visita por pessoas do local, intelectuais e gente envolvida com projetos sociais e caridade. Lá pelas tantas, parou em frente a uma das choupanas mais miseráveis do lugar, à porta da qual estava um homem que era só pele e osso. Apesar de obviamente debilitado, o homem lhe sorriu simpaticamente. Em seguida, lhe disse:
- Tenho fome.
O Dignatário ouviu e hesitou por um instante. E isso foi o suficiente para que a frase, somada ao silêncio que a seguiu, atraísse alguns outros moradores que estavam próximos. Em questão de segundos, havia um pequeno grupo, que crescia a olhos vistos, cercando o Dignatário. E de certo modo, ele começava a sentir o peso que cada presença ali colocava sobre seus ombros, esperando sua resposta.
Aos poucos, ele começou a falar sobre as condições desumanas que afligiam aquele povo. Apesar de ser sua primeira visita, ele conhecia bem a natureza do problema e as particularidades da versão local da questão. Mais ele falava, mais seu tradutor se esforçava, mais as pessoas o ouviam com atenção. Pareciam mesmo emocionadas por suas palavras. Também, pudera, pensou ele; um alto Dignatário da ONU, um homem internacional, culto, criado e educado nas melhores escolas do mundo, ali, junto dessas pessoas tão miseráveis, dando-lhes atenção e se dedicando a tratar com elas de seus problemas. Era emocionante para aquelas pessoas, tão privadas de absolutamente tudo, que alguém tão diferente deles, tão privilegiado, estivesse lhes dedicando atenção. Algumas das mulheres com seus filhos pequenos no colo começaram a chorar, emocionadas.
E ele falou por vários minutos, prometeu modificar o modo de distribuição, aumentar o tempo de atendimento médico, mudar o modo como as cargas de alimento eram distribuídas, comprometeu-se a desenvolver pessoalmente um novo método logístico que ajudasse aquela gente mais efetivamente. Ao final, foi muito aplaudido, várias mães trouxeram seus filhos para contemplarem o Dignatário e receber sua atenção. O grupo começou a dispersar-se e o Dignatário notou, então, que o homem ainda estava ali, na porta de sua choupana, exatamente do mesmo modo em que o encontrou. Guardava ainda no rosto o mesmo sorriso simpático. Aproximou-se dele mais um passo, e fez sinal para o tradutor que traduzisse a conversa. Perguntou ao homem:
- Você ouviu as minhas palavras? Percebe que eu estou aqui para ajudar a mudar as coisas? Percebe que eu conheço todas as razões pelas quais seu povo se encontra nessa situação, para poder mudar algo por aqui?
- Tenho fome. – repetiu o homem.
- Sim, eu entendi isso. Mas você entendeu que estou aqui para ajudá-lo?
- Tenho fome. - disse, ainda uma terceira vez, com o mesmo sorriso no rosto magro.
O Dignatário olhou para o tradutor, um tanto desconcertado. E o tradutor lhe disse:
- Senhor, eu não quis interrompê-lo durante seu discurso aos locais – mas por estas bandas há um velho senhor estrangeiro que ajuda os nativos distribuindo comida a eles.
- Ele fundou uma ONG? Precisamos falar com ele...
- Não senhor. Ele não tem ONG, não organiza nem ensina nada. Ele apenas distribui comida para as pessoas, do modo mais justo que pode encontrar.... esse homem, ele..
- Mas sem uma organização sistemática? Sem apoio institucional? E porque é que nosso pessoal ainda não recrutou esse homem para nos ajudar, já que ele é tão respeitado por aqui?
- Bem, senhor, foi a ONU que o mandou pra cá alguns anos atrás. Ele era Dignatário da ONU, como o senhor. Mas depois de passar muitas vezes por aquele homem na porta da choupana e ouvir dele exatamente as mesmas palavras, todas as vezes,  acho que ele entendeu.


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